quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Garry Kasparov "Não quero revanche com computador"

Garry Kasparov


ENTREVISTA DADA POR GARRY KASPAROV PARA A REVISTA ISTO É

"Não quero revanche com computador"


uns dos maiores enxadrista da história fala da derrota para Deep Blue, defende o ensino de xadrez nas escolas e diz que o colapso da Rússia é iminente


Ele foi candidato à presidência da Rússia em 2008

Muito mudou desde a última visita da lenda do xadrez Garry Kasparov ao Brasil, em 2004. Hoje, com 48 anos, o russo, que manteve o título de melhor enxadrista do mundo por quase duas décadas, um recorde, aposentou-se em 2005 e resolveu se dedicar a uma nova causa: levar o xadrez às escolas de todo o mundo. Foi essa missão que o fez, na semana passada, voltar ao Brasil, onde anunciou sua intenção de abrir um braço da Kasparov Chess Foundation no País até o começo de 2012. “Para fazer qualquer coisa de peso na América Latina é preciso envolver o Brasil”, disse ele, que já tem o apoio dos ministros da Educação, Fernando Haddad, e da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante. “Teremos a sede em São Paulo e uma filial em Buenos Aires, de onde integraremos os países de língua espanhola da região.” Kasparov veio ao Brasil acompanhado de sua terceira mulher, a bela Daria Tarasova.

"O xadrez ajuda a desenvolver as habilidades de aprendizado,
na concentração, na disciplina e no pensamento lógico"


Como o xadrez ajuda na educação?


Garry Kasparov -

O xadrez ajuda a desenvolver as habilidades de aprendizado. Claro, a matemática é a mais evidente das disciplinas beneficiadas. Mas o xadrez ajuda ainda na concentração, na disciplina e no pensamento lógico. Também ajuda a criança a ser mais flexível, adaptável e aumenta o senso de responsabilidade. No xadrez, se você toma uma decisão certa, o resultado é imediato e positivo; se toma uma decisão errada, também é imediato e negativo. A culpa, para todos os efeitos, é sempre do jogador. Há também um sem-número de estudos que mostram que as turmas que praticam xadrez têm desempenho melhor do que as que não praticam.

Istoé -

Na infância, quanto tempo passava por dia jogando?

Garry Kasparov -

Não sei, muitas horas. Sempre fui muito bem na escola, nunca tive dificuldades, então tinha bastante tempo livre e o usava para isso. Um colega, seis anos mais velho, me acompanhava. Pouco antes de completar 10 anos me tornei semiprofissional e passei a competir pelo time local. Quando vi, já tinha arrumado um técnico e estava treinando. Sempre foi fácil. Não me lembro de sacrifício. Era uma grande felicidade estudar, treinar e jogar. Mexer as peças, ler os livros, era tudo muito bom.

Istoé -

Hoje muito do treinamento de novos talentos é feito com computadores e pela internet. O que pensa disso?


Garry Kasparov -

É um fato. Tem coisas contra as quais não faz sentido se opor, elas acontecem e pronto. Mas os elementos do contato humano, mesmo nesse jogo, não podem ter sua importância ignorada. Os computadores oferecem muitas opções interessantes de estudo. As crianças passam cada vez mais tempo em frente ao computador, então convencê-las a praticar o xadrez no computador é mais fácil. O ambiente é mais propício. Mas fica um rastro no jogo de quem treina com a máquina de que o aprendizado foi computadorizado. Quem treina com computador não faz os estudos no papel, como eu fazia. O jeito como os novos jogadores colocam o jogo no tabuleiro é diferente. Eles não têm mais a cultura clássica do xadrez.
Istoé -

Isso é ruim?


Garry Kasparov -

É a realidade. O que vemos é que o desempenho médio aumentou assustadoramente. Isso pode ser observado em vários esportes. Os gênios continuam existindo, como Lionel Messi no futebol. O que mudou foi a média. Hoje Pelé não conseguiria fazer o que ele fez 50 anos atrás. O mesmo vale para o xadrez. A média aumentou porque há muito conhecimento disponível. Um grande mestre adolescente hoje sabe muito mais do que Bobby Fischer (enxadrista) sabia 40 anos atrás. Mas isso não quer dizer que ele chegue perto de Fischer quando o assunto é talento. São realidades diferentes e temos de nos adaptar a elas.
Istoé -

O xadrez teve um papel importante na propaganda ideológica comunista?


Garry Kasparov -

Sim. O jogo tinha suporte do Estado, treinamento e verba para ser usados como arma de propaganda do regime. Hoje, na China, a situação se repete. As crianças chinesas frequentemente aparecem entre os dez melhores do mundo. Em países como a antiga União Soviética e a China atual há poucas opções de distração para as crianças. Então o xadrez surge como alternativa até de lucro para famílias pobres. Com o jogo, elas complementam a renda. Milhões de chineses são apresentados ao xadrez hoje em dia. Com esse tipo de estímulo, sempre surgirá um grande talento. É como o futebol no Brasil. Tendo um influxo de talento constante, você consegue o craque. A vantagem do xadrez é que ele é barato. Não requer praticamente nenhuma infraestrutura, só interesse.
Istoé -

Mas os talentos viram agentes indiretos de propaganda do Estado, como aconteceu com o sr. Isso o incomoda?


Garry Kasparov -

Quando eu comecei a jogar, não me preocupava com nada, só queria jogar e ganhar. Era uma vida muito boa, amava xadrez, jogava muito bem e tinha apoio material para os meus estudos, coisa que pouca gente tinha na União Soviética. Depois dos meus 16 anos, quando vi que teria que enfrentar o (campeão mundial) Karpov, por exemplo, comecei a ver as nuances da propaganda. Ele era abertamente pró-regime e passei a me questionar.

Istoé -

Como era voltar para casa depois das viagens?


Garry Kasparov -

Na escola eu era uma atração. Era a única pessoa que viajava para capitais de países capitalistas. Todos vinham me perguntar como era a vida nesses países, até os professores. Sempre gostei de voltar pra casa. Mas também gostava de viajar, ganhar o dinheiro que me garantia uma vida boa na União Soviética, coisa que quase ninguém tinha. Sempre fui muito curioso com o mundo, foi ótimo.

Istoé -

Como foi crescer em um país comunista e depois ver tudo mudar tão dramaticamente?

Garry Kasparov -

Da infância lembro pouco, desde cedo me dediquei muito ao jogo e aquilo me bastava. Quando o muro caiu e as coisas mudaram na União Soviética, não houve muita novidade pra mim. Eu viajava o mundo desde os anos 1970, conhecia outras realidades como poucos soviéticos e sabia como as coisas eram do outro lado. Propriedade e liberdade eram conceitos que eu entendia. E mais: nos anos 1980 eu já estava envolvido com movimentos democráticos para mudar o regime do país. Sabia da inevitabilidade do colapso.
Istoé -

Mas não sentiu a mudança?

Garry Kasparov -

Houve um choque inicial ao perceber que aquilo tudo tinha acabado. Mas eu sabia que aquele império jamais sobreviveria à pressão a que estava submetido. Vi os subúrbios ficando independentes, criando a própria burocracia e se recusando a prestar contas a Moscou. O colapso foi assustador. E temo pelo colapso da Rússia sob (o primeiro-ministro) Putin. Essa é uma das razões pelas quais me envolvi com a política.

Istoé -

A derrocada da Rússia será pior que a da União Soviética?

Garry Kasparov -

O fim da União Soviética não foi tranquilo, mas também não viramos uma Iugoslávia. Claro, teve muito sangue, sofrimento, muitos morreram. Mas, comparando com o que aconteceu em algumas repúblicas soviéticas, fomos até bem. Mas agora, com o norte do Cáucaso a ponto de explodir, as guerrilhas locais, as guerrilhas islâmicas, os desentendimentos entre grupos étnicos, creio que o fim será muito mais feio. Espero que sobrevivamos a isso.

Istoé -

A seu ver, o colapso da Rússia sob Putin é iminente?

Garry Kasparov -

O colapso é iminente – e será horrível. A Rússia hoje não tem Estado. O Estado deveria ser uma instituição que serve às pessoas. Existem Estados mais eficientes, menos eficientes e sempre há corrupção. A diferença é que no Estado russo a corrupção não é um problema, é um sistema. O Estado hoje parece um feudo dividido em grupos que se beneficiam dos chamados “recursos administrativos” ou verba governamental. A Rússia não é nem uma ditadura. Porque uma ditadura tem agenda. Pode ser uma agenda horrível, destrutiva, mas é uma agenda. A Rússia não tem agenda. O único objetivo é ganhar dinheiro. Putin quer governar como (o ditador) Stalin e viver como (o bilionário) Abramovich.
Istoé -

As perspectivas para a então União Soviética eram melhores que as atuais para a Rússia?


Garry Kasparov -

Não sei. Olha, sob nenhuma circunstância, tenho simpatia pelo comunismo. O sistema criou imensos problemas, gerou muito sofrimento e atrasou o desenvolvimento. Mas qualquer regime, até o soviético, tem um propósito, um objetivo. Os soviéticos competiram com os EUA na corrida espacial e, assim, desenvolveram tecnologia. Quando criança, eu sabia que tinha chances de virar um cientista, um enxadrista, independentemente de onde eu tivesse nascido ou de quem eram meus pais. Hoje, na Rússia, se você não nasce nas famílias dos oligarcas, não tem chance alguma. Nem em infraestrutura eles investem. O que temos hoje é sobra da União Soviética.

Istoé -

O sr. foi candidato a presidente em 2008, mas desistiu. Pensa em concorrer de novo?


Garry Kasparov -

Ser candidato como eu fui é marcar posição. Me candidatei não para ganhar, mas para que houvesse verdadeiras eleições. Hoje você só participa das eleições como candidato se estiver alinhado com o Kremlin. E a Suprema Corte é um fantoche do governo, então nada acontece.

Istoé -

Acha que terá de marcar posição novamente?


Garry Kasparov -

Não. Atualmente, cada vez mais pessoas percebem quanto todo o sistema é uma farsa. Hoje a discussão é em torno de como expressar o descontentamento. Uma possibilidade é anular o voto. Outra é se descadastrar do sistema eleitoral. Sou a favor do descadastramento. Mas é difícil se organizar na Rússia. O país é enorme e o Estado tem muito dinheiro, vende muito petróleo para comprar lealdade de setores representativos da sociedade.

Na sua carreira, o sr. foi derrotado por um computador, o Deep Blue, em 1996. Que lição ficou?

Garry Kasparov -

Ele nunca foi testado em outra competição. Hoje você pode comprar um simulador de xadrez e rodá-lo no seu computador e ele será mais sofisticado que o Deep Blue. A lição que ficou é a de que as máquinas podem melhorar indefinidamente, mas o xadrez continuará sendo um jogo matematicamente infinito. Não existe solução para o jogo por que o número de variações é astronômico. Não dá para calcular todos os jogos do primeiro ao último movimento. A vantagem que as máquinas sempre terão é que elas são estáveis. Até os melhores jogadores tem subjetividades e flutuações. A máquina não se altera. Não sabe se está ganhando ou perdendo. Eu sei, e isso me influencia.
Istoé -

Quer uma revanche contra o Deep Blue?

Garry Kasparov -

Não, mas, se voltasse a competir com computadores, faria algumas exigências. Uma única vitória humana, por exemplo, seria o suficiente para acabar a competição. Hoje é preciso uma sucessão de vitórias. Dar essa vantagem ao ser humano tira a pressão de estar competindo contra algo que terá sempre o mesmo desempenho. Com essa exigência e mais algumas pequenas mudanças de regra ainda poderemos ter boas disputas entre seres humanos e máquinas.




Por: Afonso Albuquerque

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